terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mamy e a mudança

Mamy, essa pitoresca criatura humana, passa por uma fase difícil. Se bem que a palavra "fase" não se aplica muito a mamy nesse caso, uma vez que minha progenitora se considera a mais desafortunada das criaturas desde que veio ao mundo, lá por meados dos Anos Dourados. A verdade é que mamy, assim como aquela hiena da Hanna Barbera, gosta de reclamar da vida.

E um acontecimento recente em nossas vidas tornou-se para mamy um prato cheio para essa prática que tanto aprecia: fomos intimidos a deixar o imóvel em que moramos. A casa deverá ser devolvida ao proprietário graças a um imbróglio de herança. Mas para mamy, a justificativa jurídica é pura balela! Nosso despejo, óbvio, é resultado de uma teoria conspiratória do proprietário, da mulher dele ("aquela maluca"), da imobiliária e do mundo com o intuito de, por assim dizer, ferrá-la.

- Quero tirar essa história a limpo, esse negócio de herança tá muito estranho, esbravejou mamy, já ameaçando: - Se eu passar pro aqui depois e tiver outra pessoa morando, vai dar merda!

Mas os ataques de fúria não duram muito. O que mamy gosta mesmo é da prática da vitimização:

- Não consigo mais dormir com essa história da mudança. Estou com taquicardia! Acordo deprimida todos os dias.

E foi pior eu argumentar que a taquicardia deveria ser minha, afinal, é do meu bolso que sairá a grana do aluguel certamente mais alto. Tive que ouvir uma lição de moral digna de personagem abnegado de novela.

- Pra você, tudo se resume a dinheiro!


Na tentativa de aplacar-lhe os ânimos, convidei mamy para me fazer companhia em uma conversa com o advogado sobre os trâmites legais da recisão do contrato. Quem sabe explicações mais didáticas a demoveriam da ideia de que tudo não passa de implicância da mulher do proprietário, "aquela maluca"?


Não foi a melhor das ideias, leitores. Mamy não só saiu do escritório ainda mais convencida de que somos vítimas de uma maquiavélica conspiração como me deixou em situação de absoluto constragimento na pequena salinha. A chacota começou logo que adentramos o recinto. O advogado não havia chegado ainda e a notícia do atraso foi transmitida por um subalterno, sujeito que mamy simplesmente não suporta. O protesto foi veemente:

- Minha filha trabalha, não pode esperar! E eu não tomei nem meu café pra chegar aqui cedo! Isso é muita irresponsabilidade!

Tentei pedir calma, afinal, eram só 10 minutos de atraso. Mas fui interropida por outra lamúria:

- Ainda tenho que olhar pra cara desse escroto!

É pertinente ressaltar que mamy falou alto, que o escritório possui dimennsões reduzidas e que o "escroto" em questão certamente ouviu o sutil comentário.

A chegada do advogado foi tensa. O homem justificou o atraso dizendo que tivera uma crise de hipertensão. No que mamy concluiu (também em voz pouco baixa):

- Também, obeso desse jeito!


E se vocês já estão com dó de mim, não imaginam o que eu passei durante a nossa conversa com o profissional de Direito. Primeiramente, o referido tentou explicar que deveria notificar a locatária, no caso minha tia, para formalizar a recisão. No que mamy logo retrucou:

- Sou irmã dela, pode falar comigo mesmo.

O homem (com paciência inexplicável) insistiu que tratava-se de um indispensável trâmite legal e perguntou se a minha tia, a locatária, ainda é viva. Ocorre que o coitado não sabe, mas titia, coitada, foi acometida por um grave problema de saúde recentemente. Embora já esteja em franca recuperação, mamy se apressou em responder:

- Viva ela é, mas tá quase morrendo.

Prevendo que a pressão do advogado desta vez, sim, subiria a ponto de matá-lo, mandei mamy calar-se e perguntei se havia um modo de notificar titia sem exigir dela um esforço físico. O pobre tentou me explicar, mas foi novamente interropido por uma debochadíssima questão de mamy:

- A casa do vizinho também pertence aos proprietários da minha. Mas eles tavam fazendo festinha no domingo. Achei estranho, né? Receber notificação de despejo e fazer festa? Ou eles não receberam?



Mais uma vez o pobre homem explicou o imbróglio. E generoso, coitado, ainda comunicou que havia um imóvel disponível, caso nos interessássemos. Só havia um porém: era localizado no inóspito bairro de Alcântara, município de São Gonça. Até aí mamy até se conteve. Mas sugerir uma casa em Gonça era ferir demais o orgulho dela:

- Alcântara, aquele lugar horrível? Minha filha é jornalista, meu filho. Querem me despejar, tudo bem! Mas me arranjem um lugar decente pra morar!

Já a sós comigo no elevador, se despediu com essa:

- Com essa gente é assim! A gente não pode perder a pose!